O PODER DAS PALAVRAS
ZARCILLO BARBOSA
“Lutar com palavras/ é a luta mais vã/ Entanto lutamos/ mal rompe a manhã”.
Drummond tem três poemas onde relata o quanto é difícil enfrentar o poder das palavras. “Algumas são fortes/ como o javali”.
Depois da publicação do seu Dicionário Filosófico (1764), Voltaire teve que fugir da França por ter dado sentido político e filosófico a certos conceitos que permeavam a sociedade do seu tempo.
Era perigoso pensar diferente do Estado ou da Igreja. Até hoje, às vezes. Voltaire queria levar o povo a pensar com a própria cabeça. Esse negócio de dogmatizar, dizer que o poder do rei é divino só pode ser um engana trouxa (pour épater le bourgeois).
Tinha razão Carlos Drummond de Andrade: “certas palavras não podem ser ditas/em qualquer lugar e hora qualquer”. Palavra é chama! O procurador federal de Uberlândia, tempos atrás quis tirar de circulação o dicionário Houaiss por revelar acepções pejorativas à palavra “cigano”. O dicionário, muito a propósito também chamado de “pai dos burros”, apenas indica os sentidos – sejam eles elogiosos, pejorativos ou neutros. Uma palavra é um corpo vivo da língua. O procurador pediu R$ 200 mil de indenização em nome dos 600 mil ciganos existentes no Brasil. O dicionário registra que, com intenções pejorativas, “cigano”, pode significar aquele que trapaceia. Dicionários servem para ler a língua, não para escrevê-la.
Seguindo esse raciocínio teríamos que cassar a letra do baião Asa Branca, na qual Luiz Gonzaga fala de “tamanha judiação” para os efeitos da seca no sertão. E a Nega do Cabelo Duro, de David Nasser, “qual é o pente que te penteia?”
Diz o brocardo jurídico que “o que não está nos autos não está no mundo”. O inverso também se aplica na prática desses profissionais. É o positivismo do direito levado a ferro e fogo. Que se defenda o prejudicado.
Também “denunciei” o Houaiss quando, na sua primeira edição, disse que “bauru”, além de cidade do Estado de São Paulo, era o nome de um sanduíche feito de “presunto, queijo e ovo frito”. Na segunda edição, a receita já estava igual à praticada pelo Zé do Skinão, que não deixou morrer a criação de Casemiro Pinto Neto, de 1937. Rosbife, queijo derretido e pepino em conserva em pão francês sem miolo. Inclusive, o Houaiss passou a mencionar a lei do então vereador Ávila, oficializando os ingredientes.
Em tempos pandêmicos, o brasileiro teve que aprender o que é lockdown. Em inglês significa o ato discriminatório de Estado, proibindo a livre circulação de pessoas e o fechamento de ruas e locais de aglomeração de pessoas. Por ser contra o lockdown há quem queira o impeachment do presidente Bolsonaro. No Carnaval passado ele já havia chocado o senso comum com a tal golden shower (chuva dourada). No Twitter, o presidente postou o vídeo de uma cena em que um homem urina na cabeça de outro.
Não só em português podemos atrair tempestades, douradas ou não. Com palavras estrangeiras, também.
Volto a Drummond: “E tudo é proibido. Então falemos”.