
OS PARASITAS NA DISNEYLÂNDIA
ZARCILLO BARBOSA
No Cemitério de Highgate, em Londres, perdido entre tumbas góticas é possível ler numa antiga lápide: “Aqui jaz uma empregada doméstica (servant) que trabalhou a vida inteira e, enfim, descansa em paz”. O epitáfio de uma anônima fez mais para os trabalhadores do lar que a sepultura monumental de Marx, ali perto, com a famosa frase que encerra o Manifesto Comunista: “Trabalhadores de todas as terras, uni-vos”.
Mais de um século depois da morte da doméstica londrina, a categoria de trabalhadores só começou a garantir direitos em 2014, aqui no Brasil. Até então tinham sido preteridos, tanto na CLT de 1943, quanto na Constituição de 1988. Assim mesmo, as regulações somente aconteceram em 2017, reconhecendo direito a uma jornada definida, piso salarial, Previdência. Ainda assim, segundo o IBGE, o salário médio de uma doméstica no Brasil é de R$ 897 por mês, inferior ao mínimo de R$ 998.
Na cabeça do ministro da Fazenda Paulo Guedes, as empregadas domésticas cansaram de ir à Disneylândia, duas, três, quatro vezes ao ano, aproveitando o dólar a R$1,80. A “festa danada”, segundo Guedes, teve fim com o câmbio mais realista, o dólar a R$ 4,30, que permite ao país ser mais competitivo e exportar.
As chamadas “secretárias do lar”, com os salários praticados, se foram à Disney, viajaram na condição da babá dos filhos das famílias ricas. Hoje, nem isso é possível, com o empobrecimento da chamada classe emergente.
O ministro Guedes, fiel ao estilo Bolsonaro, deu outras declarações classicistas desastradas e que demonstram aporofobia – palavra que vem do grego e significa “rejeição ou aversão aos pobres”. Outro dia, aquela autoridade disse que “As pessoas degradam o meio ambiente porque precisam comer”, como se fossem os miseráveis os culpados pelo desaparecimento acelerado das nossas florestas. Em outra fala, o ministro generalizou com os funcionários públicos, chamando-os de “parasitas” sugando o Estado “hospedeiro”.
No filme ganhador do Oscar, Parasita, o diretor coreano, com humor negro deixa claro o ódio mortal, não declarado, que existe entre patrões e seus empregados domésticos. O motorista “tem cheiro de metrô”, ou de “nabo velho”. O choque entre a pobreza extrema e a riqueza ostentatória acaba em tragédia.
No século passado, as famílias mais abastadas mandavam buscar na roça essas “gatas borralheiras” que dormiam no quartinho dos fundos e comiam depois dos patrões. Tinham condição de “afilhadas”, porque ganhavam roupas usadas, algum dinheiro e ainda podiam ir à escola para se alfabetizarem.
No clássico Casa-Grande&Senzala, Gylberto Freire mostra como essa organização social condicionou a formação sociocultural da nação. Escravos, comadres, compadres e afilhados frequentavam a casa do senhor, para servi-lo. Era em torno desse imóvel-símbolo que girava a sociedade em que todos conviviam. Estavam todos juntos, mas todos sabiam o seu lugar, desiguais que eram. “Não avançam o sinal”, como diz o exigente empregador de Parasita.
Com a Emenda das Domésticas, as profissionais conquistaram quase duas dezenas de direitos adicionais. Ainda estão longe de uma vida digna. Disneyworld, nem sequer em sonho.
O fenômeno social está longe de aproximar patrões e assalariados, salvo exceções raras. Capital e trabalho são irreconciliáveis, alertava o velho Marx. No filme coreano, os “parasitas” podem estar dos dois lados.
