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O HOMEM DA CERVEJINHA

O HOMEM DA CERVEJINHA

ZARCILLO BARBOSA


Era impossível deixar de desviar a visão à esquerda, ao passar pela Rua Rio Branco a caminho de casa. O mesmo acontecia com centenas de outros bauruenses, atraídos pela visão daquele homem tranquilo, degustando o seu copo de cerveja. Do terraço, ele via a cidade passar.


Ninguém sabe o que ele esteve pensando, durante anos, das pessoas que desfilaram diante das suas retinas cansadas. A recíproca também poderia ser matéria de especulação. Todos nós somos reais por fora, mas infinitos na essência.


Falo por mim. Nas minhas passagens apressadas ou parado à espera da abertura do semáforo, muitas vezes me lembrei do “eu lírico” em Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, Ao volante do Chevrolet pela Estrada de Sintra: “Ele era fixo, eu o que vou”.


É incrível como essa mutualidade nos traz sensações do infinito. Dentro de uma tarde, tudo é sonho. O que passa e o que está, podem deixar de se vincular ao presente imediato e se transportarem a problemas de ordem existencial em todos os níveis.


Nunca tive contato com “o homem da cervejinha”, com nome de família tradicional na cidade. Soube pela rede social que ele nos deixou neste vale de lágrimas pandêmico. Nada a ver com o vírus. Deixa a esposa que eu acompanhava no Face, pelas suas observações inteligentes e cultas.


Fiquei triste, mesmo sem ele ter sido do meu círculo de amizades. Teria encantado o filósofo Walter Benjamin, autor de estudos de interesse acadêmico sobre o que ele chamava de “emblemático arquétipo da experiência moderna”. Ele se referia ao flâneur, expressão criada por Baudelaire para nomear aquele que se encanta com o cotidiano. Seria um contraponto às transformações sociais da era tecnológica (a Revolução Industrial estava no seu apogeu), que nos deixam alheios ao real sentido da vida.


Hoje, muito mais, a tecnologia virou a vida pelo avesso. Motoristas e passageiros estão mais atentos aos seus smartphones. Nem prestam a atenção devida ao trânsito. Um homem bebendo, certamente passaria despercebido.


A verdade é que o mestre frankfurtiano e o poeta se encantaram com o fenômeno das pessoas ainda capazes de observar seus semelhantes em suas rotinas, com suas diferentes expressões faciais.


A gente vê o mundo correndo pelas janelas do carro ou do ônibus. O homem, com o seu copo de espuma abundante, via as janelas correndo diante do seu mundo.


No panorama visto do terraço, seu Tepedino (este era o patronímico), viu o desaparecimento do velho campo do BAC, onde Pelé aprendeu a jogar bola. O progresso levou as suas lembranças e o orgulho de milhares de outros bauruenses. As velhas arquibancadas foram demolidas e no lugar nasceu um supermercado. A residência se valorizou e surgiram as irresistíveis propostas de compra. Adeus panorama visto do terraço.


Vícios que a modernidade impõe. Perdemos também o nosso observador.  Imersos no mundo virtual esquecemos que um mundo existe lá fora. Refletir sobre ele é recuperar o senso de comunidade. Principalmente quando sentimos prazer em observar multidões.


No conto “O homem das multidões”, o personagem de Edgar Allan Poe dedica-se ao exercício de adivinhar as profissões, as preocupações e até os  crimes dos transeuntes. Seria ele uma espécie de “botânico do asfalto”, que estuda a cidade como fonte de alegorias.


O Iluminismo do final do século 17 reduziu todo conhecimento a um pensamento exclusivamente racional. Afastou-nos daquela mística universal, a da contemplação filosófica. Kant esqueceu que desde os mais remotos tempos, essa atitude zen – para usar de uma linguagem que os jovens gostam –  é que uniu os homens em laços fortes.


Apenas com esse poder é possível vencer de forma saudável este mundo doente. Sem que isso signifique a rejeição das conquistas científicas e os benefícios que trouxeram e trazem para a humanidade. O utilitarismo econômico é que mata.


Seu Tepedino, hoje em bom lugar, deve continuar nos observando e atento a cada detalhe da rua que sempre foi sua fonte de inspiração. Alguém tem que nos olhar lá de cima. E nos proteger.

Zarcillo Barbosa é jornalista
proximarota
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