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O DIA EM QUE BAURU VIROU SANDUÍCHE

O DIA EM QUE BAURU VIROU SANDUÍCHE

Ponto Chic, bar e restaurante paulistano, foi o pioneiro em servir o sanduíche mais famoso do Brasil, criado por Casimiro Pinto Neto

 

 

 

“O verdadeiro sabor paulistano”. “Tradição desde 1922”. São as chamadas do cardápio das quatro unidades do Ponto Chic, em São Paulo, o bar onde o nome da nossa cidade transformou-se num substantivo para denominar o sanduíche “bauru”. Essa refeição ligeira – ou fast-food, como preferem os anglófilos – atrai para a matriz, bem no centro velho da Capital, clientes famosos, jornalistas, escritores, artistas e gente comum que faz questão dos ingredientes nutritivos depositados numa caminha de pão francês, sem miolo.

 

A primeira casa onde o sanduíche ganhou fama continua no mesmo lugar: o velho prédio de dois andares, estilo colonial, portas e janelas arredondadas, no número 27 do Largo Paissandu, bem ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. No segundo andar, nos anos 30-40, Madame Fifi mantinha um fino bordel que reunia garotas importadas da França, em tempos de Moulin Rouge. A ligação do térreo com o salão superior, templo de prazeres e sedução,  dava-se por uma escada a partir do interior da lanchonete. Quando desciam com a libido aliviada os clientes da Madame Fifi procuravam restaurar as  forças no bar do térreo, onde era servido um mexidinho de ovos e presuntos ou uma fritada de caçarola. Ambos os pratos continuam no cardápio.

 

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Fachada do Ponto Chic no Paissandu

 

 

Madame Fifi teve que deixar o local por força das pressões moralistas. No primeiro andar  instalou-se um bilhar frequentado pelos estudantes de Direito do Largo do São Francisco, entre eles Casimiro Pinto Neto, o “Bauru”, apelido que ganhou por causa da sua cidade de origem. Lord Sandwich, chefe do Almirantado britânico no século 18, jogador contumaz, foi quem inventou de colocar alguma coisa no meio do pão para poder se alimentar rapidamente, sem ter que largar as cartas do baralho. A mesma estratégia levou Casimiro a inventar o sanduíche Bauru. Queria ficar bem alimentado sem ter que interromper o jogo de bilhar, simplesmente para sentar-se à mesa diante de um prato convencional. Numa tarde de abril de 1937 a fome bateu, entre uma tacada e outra. O Bauru queria desforrar-se do adversário. Devolver a derrota da partida anterior. Não havia como parar. Chamou o chapeiro Ocxêncio José da Silva  e ordenou: “Coloque aquele lagarto fatiado do Carlino no meio de um pão francês. Complete com o queijo fundido (já utilizado pelo Ponto Chic, uma simbiose de gouda, estepe, suíço e queijo-prato derretidos na manteiga e um pouco de  água quente). Acrescente umas fatias de picles de pepino e manda aqui pra cima”. Assim foi ditada a receita do famoso sanduíche, hoje uma instituição. Os clientes viam Casimiro comendo o sanduíche com tanto gosto que começaram a pedir “um igual o do Bauru”. O gerente não teve alternativa senão acrescentá-lo ao cardápio. O bauru extravasou as fronteiras nacionais. É encontrado em muitas lanchonetes de países limítrofes. Em Nova York, na “delicatessen” Baruch’s da 3ª Avenida com a Rua 32, o viajante brasileiro pode pedir um “brazilian bauru” que será atendido. No cardápio, está bem abaixo do Pastrami, o tradicional sanduíche judeu.

 

O jovem Casimiro Pinto Neto era um homem inteligente e charmoso. Foi locutor de rádio e um dos primeiros Repórter Esso do país. O povo acompanhava todos os lances da 2ª Guerra Mundial pelos relatos do Casimiro.  Dirigiu o Departamento Comercial da Jovem Pan. Foi dono de um modesto Cartório de Paz  em São Paulo. Casou-se duas vezes e deixou duas filhas. Morreu em 1983, no dia 3 de dezembro, após sofrer dois anos com câncer.

 

 

Do Carlino até o Zé Carlos

 

Tal como o sanduíche,  é uma delícia ouvir as histórias do “bauru” e do Ponto Chic contadas por José Carlos Alves de Souza, o atual proprietário. São mantidas filiais no Paraíso e Perdizes. Em 1922, o dono do Carlino, da Avenida São João, tradicional restaurante italiano que resistiu há mais de um século, decidiu montar um bar para o seu filho e escolheu a casa do Largo Paissandu, 27. Perfeccionista como todo imigrante europeu, não queria uma casa qualquer, com mobiliário chinfrim, mas do melhor que havia na época na Europa, incluindo mármore de Carrara, cristais da Boêmia e azulejos portugueses. O bar ficou lindo e sofisticado.  Os frequentadores se referiam a ele como o “Ponto Chic”. E assim ganhou um  nome definitivo.  “Carlino Bar” perdeu a vez, mas o restaurante continuou até há poucos anos quando foi fechado, na Av. Vieira de Carvalho.

 

O filho do Carlino era o Odílio Cechini, fanático pelo Palestra Itália, depois Palmeiras. Foi diretor da  agremiação  por muitos anos. A inauguração do Ponto Chic coincidiu com a Semana de Arte Moderna. Depois  das récitas no Teatro Municipal os intelectuais esticavam a noite no Largo do Paissandu. Cechini recebia em seu estabelecimento personalidades como Tarsila do Amaral, Santos Dumont, Monteiro Lobato, Mário de Andrade e Oswald de Andrade. O velho Lobato atacava os modernistas que se insurgiam contra quaisquer regras que tolhessem o poder de criação. “Palhaçada”, “desvirtuamento da arte” – bradava o escritor-conservador. A discussão acalorada só não terminava em tapas porque “noblesse oblige”. São Paulo dos tempos da garoa, dos bondes da Light, das damas de chapéu e homens de terno, gravata, palheta e bengala ou guarda-chuva no braço,em passeio pelas ruas de paralelepípedos. A cidade se industrializava. As indústrias Matarazzo ganhavam porte; construíam-se viadutos e surgiam os primeiros arranha-céus. São Paulo ganhava ares de metrópole.

 

O Ponto Chic virou point de intelectuais e também de esportistas, por causa do palmeirense Cechini. Quando terminavam os clássicos no Pacaembu,  nos anos 40-50, os alvi-verdes baixavam no Ponto Chic para esperar a Gazeta Esportiva. O jornal era um prodígio do imediatismo. Os jogos terminavam às 17 horas e às 19 horas já circulava com os resultados e fotos. “Oba, oba, isto sim é que é jornal”.  Oswaldo Brandão, o técnico do “porco” contratava e vendia craques a partir da mesa do bar. Do Paissandu saiam os ônibus para os principais bairros. Dentro e fora do Ponto Chic os torcedores e aglomeravam para discutir os lances da partida.

 

 

Denúncia vazia e bar fechado

 

Esperto diante das possibilidades de otimizar seus lucros, Odílio Cechini sub-locou os espaço nas portas que davam para o movimentado largo. O senhorio não gostou de ver tabacaria, chaveiro e outro tipo de comércio diferente daquele inicialmente previsto. Ingressou em juízo com uma “denúncia vazia” contra o locatário. A Lei do Inquilinato permite que o proprietário solicite o imóvel, desde que para uso próprio. Uma comoção tomou conta de São Paulo e de todo o país. O fechamento das portas do Ponto Chic foi objeto de matérias na grande imprensa e na televisão. Durante três anos o proprietário manteve o imóvel sem utilização. Até que um antigo funcionário do bar, testemunha de todas as suas glórias, Antonio Alves de Souza, decidiu procurar o proprietário do prédio e ali reabrir o mesmo Ponto Chic de tantas tradições. Hoje “seu” Antonio é sinônimo de gente empreendedora, que dá valor à história. É pai de José Carlos, que o ajuda a preservar com unhas e dentes um patrimônio nacional: o sanduíche bauru.

 

 

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“Meu pai trabalhou como copeiro, garçom e gerente. Nunca se conformou com o fechamento da casa. Jamais deixou morrer o sonho de ver a antiga casa reaberta e com a  volta aos seus dias de glória” – emociona-se Zé Carlos. Para comemorar o retorno da casa do sanduíche bauru quis homenagear o seu criador. Na parede do fundo da lanchonete, como se fosse um altar, Casimiro Pinto Neto foi imortalizado em bronze num busto esculpido pelo famoso artista italiano Luiz Morroni. “Homenagem a Sua Excelência “O Bauru”. Mais para cima, à esquerda, uma foto aérea de Bauru, distribuída por ocasião do centenário da cidade onde Casimiro nasceu.  Aqui em Bauru temos o viaduto da Rondon sobre as Nações Unidas com o nome do nosso maior divulgador, graças ao sanduíche. Infelizmente, a placa tem um erro na grafia do nome do homenageado: “Casemiro”.

 

 

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Como o imóvel do Largo Paissandu ficou muito tempo fechado, os móveis, os balcões e os azulejos originais se deterioraram. Hoje resta muito pouco do prédio da década de 20, mas a especialidade da casa continua imbatível. A freqüência também continua de A a Z. Artistas, jogadores famosos e políticos estão sempre por lá.

 

 

O segredo do “Bauru”

 
O grande diferencial do sanduíche Bauru diante dos outros lanches da mesma espécie está no queijo fundido. Esse ingrediente não foi inventado por Casimiro Pinto Neto. Já era uma tradição trazida do Carlino a fusão dos queijos gouda, estepe, suíço e queijo prato numa única massa derretida em água quente, com um pouco de manteiga. Nascia dessa mistura uma fondue com gosto próprio. Essa liga era colocada no espaço da “canoinha” surgida com a retirada do miolo do pão francês. O rosbife de lagarto também vinha do restaurante do Carlino, pai do Odílio Cechini, como já dissemos. O lagarto é preparado numa assadeira untada, colocada sobre a chama forte,  injetada do fogão industrial para que fique bem tostado na casca e rosadinho,quase cru, por dentro. O lagarto pronto é levado ao freezer enrolado em um filme plástico a fim de manter seu formato cilíndrico. O endurecimento facilita o corte na máquina em fatias bem fininhas. Essa utilização pode passar de três dias, a partir do preparo. Acrescentam-se fatias de tomate, sal e picles de pepino. Nada de orégano ou outro temperinho a mais. O gostoso é sentir os sabores do queijo fundido com a carne; o toque picante do pepino e a leve acidez do tomate. “O tempo todo nos preocupamos com a qualidade dos produtos. Não pode haver alteração, senão a liga, que é o resultado da mistura entre os vários tipos de queijo, desanda”. A explicação é de Marcos Landino, sobrinho de José Carlos e supervisor da rede.

 

 

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Hoje o sanduíche bauru é considerado Patrimônio Cultural do Brasil. Representa o Estado de São Paulo, pelo menos pela Lei Municipal nº 4314, de 24 de junho de 1998, de autoria do então vereador José Eduardo Fernandes Ávila. Há um pedido tramitando no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para que, oficialmente, essa iniciativa seja ratificada.

 

Em Bauru a tradição do sanduíche, com sua receita original, foi mantida pelo Skinão Lanches por mais de 40 anos. O dono, José Francisco ou “Zé do Skinão”, fez questão de propagar o lanche como foi concebido por Casimiro Pinto Neto, desde a inauguração da casa, em 1972. Com a morte do pai em 2002 o filho Marcos seguiu a tradição até este ano. O Conselho Municipal de Turismo de Bauru – COMTUR outorga selo de Certificação do Sanduíche Bauru para os estabelecimentos que seguem a receita tradicional. Criou-se um boneco em forma de sanduíche para dar dimensões humanas ao sanduíche e foi criado um Festival em torno do “bauru”. A cidade ganhou um forte representante do empreendedorismo da sua gente. Não custou nada. É preciso saber cuidar desse tesouro deixado por Casimiro Pinto Neto.

 

 

RECEITA TRADICIONAL

 

  • 70 gramas de rosbife de lagarto em fatias fina
  • 100 gramas de queijo (partes iguais de prato, gouda, estepe ou suíço);
  • 1 colher de manteiga;
  • 300 ml de água;
  • rodelas de pepino em conserva;
  • rodelas de tomate em rodelas;
  • 1 unidade de pão francês (sem miolo).

 

Para o rosbife: leve a peça de lagarto, já temperada com sal e pimenta, a uma chapa ou frigideira quente para selar a carne e dourar todos os lados. A seguir, leve a carne ao forno pré-aquecido a 200 ºC por cerca de 40 minutos. É importante que o centro fique rosado. Retire e leve à geladeira por 1 hora. Depois de frio, corte em fatias bem finas, de preferência no fatiador de frios ou faca elétrica.

 

Para derreter os queijos: aqueça a água sem ferver, junte a manteiga e os queijos em porções iguais. Em fogo baixo, vá mexendo até que derretam e se misturem completamente.

 

Para montagem: corte o pão francês e tire o miolo da parte superior. Na parte inferior, disponha 5 a 6 fatias de rosbife, 3 rodelas finas de tomate e 3 rodelas finas de pepino em conserva. Na parte superior do pão (sem o miolo), coloque os queijos derretidos. Feche o sanduíche e delicie-se!

 

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*Texto: Eliane Barbosa e Zarcillo Barbosa

Eliane Barbosa
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