
O CACHORRO QUE RI E QUE CHORA
ZARCILLO BARBOSA
?
Confesso que sofro de pânico da primeira frase. Iniciar um texto diante da tela em branco me dá arrepios.
Ainda mais hoje que prometi a mim mesmo não tocar no assunto da “porra da árvore”. Também não quero saber se o Queiroz se esconde na casa da mãe de alguém. Bolsonaro não vai à Roma assistir à canonização da Irmã Dulce, a primeira santa brasileira. Se ele também brigou com Deus, problema dele.
Há os que penam para escolher o título. Querem-no como se fosse uma isca, a cenoura na frente do leitor ou os olhos azuis do texto. Aquilo que seduz e convida à aproximação. Vem bem, vem…
Hemingway, este sim, sabia escolher os títulos dos seus livros: “Do outro lado do rio entre as árvores”. Não é lindo? E aqueles dos romances que viraram filmes: “O sol também se levanta”; “Adeus às armas”; “Por quem os sinos dobram”.
Mas, campeão mesmo é Proust com seu “Em busca do tempo perdido”. Lido em francês é ainda mais bonito.
Títulos têm uma influência terrível. Tive um amigo que comprou um apartamento seduzido pelo nome do condomínio – Cap d’Antibes. A Riviera francesa povoava seu imaginário. Perdeu a vontade de passear por lá de tanto passar raiva com os vícios ocultos do seu imóvel. A cada descarga do vizinho do andar superior ele tinha a sensação de morar debaixo de uma cachoeira.
Há quem encontre dificuldades para achar a última frase. Escreve, escreve e não encontra a frase conclusiva. Desse mal não morro. Coloco um ponto final e está acabado.
Mas a primeira frase, amigo, é um parto doloroso. Depois que Franz Kafka escreveu “A Metamorfose” ninguém jamais conseguirá começar texto algum melhor do que ele. “Quando certa manhã Gregório Samsa despertou de um sono intranquilo, achou-se em sua cama convertido em um monstruoso inseto”. O clímax, o epílogo, tudo na primeira linha. Dezenas de livros foram escritos para discutir se o personagem de Kafka havia se transformado numa barata ou num besouro.
No primeiro parágrafo é preciso definir tudo: estrutura, tom, estilo, ritmo, extensão e, às vezes, até o caráter do personagem. Quem lê o início de “Ulisses”, de James Joyce, fica com a ilusão de que o resto das 700 páginas vai ser moleza. A ação de “Ulisses” transcorre em Dublin num único dia, 16 de junho de 1904. Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan desce do alto da escada com um vaso de barbear. Seu roupão amarelo, desatado, se enfunava por trás à doce brisa da manhã.
Morreu o poodle lá de casa, velhinho nos seus 17 anos, que corresponde a 90 dos nossos. Senti um nó no peito. Quando me sentava ele deitava. Se eu me levantasse o cão fazia o mesmo. Na hora de ir ao banheiro o bicho vinha atrás.
Juquinha era um cão educado. Sua mãe humana, severíssima, adestrou-o a fazer suas necessidades no jardim. Diferente do seu filho Wlademir (esse da foto) que faz cocô e xixi pela casa e some com as minhas meias.
Quem sabe ele sobreviva a mim, como o cão da Maria dos Prazeres do conto de García Márquez. Por sinal ela era uma brasileira amiga de anarquistas, com reputada carreira de prostituta na Catalunha.
Quando menina, aos 14 anos, Maria foi vendida pela mãe no porto de Manaus para um marinheiro turco.
É desta época o seu maior trauma. Houve uma enchente e as águas invadiram o cemitério. Caixões com defunto dentro boiavam no quintal.
Já septuagenária, Maria se prepara para a morte comprando o túmulo a prestações, num cemitério que nunca será atingido pelas águas.
A prostituta solitária ensina o cachorro a velar seu futuro túmulo. O cão já sabe chorar. O velho Gabo termina o seu conto lamentando que os donos passem a via educando os cachorros com hábitos que os fazem sofrer, como comer em pratos ou fazer suas porcarias na hora certa no mesmo lugar. “E em compensação não ensinam as coisas naturais das quais eles gostam, como rir e chorar”.
