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O ANO QUE NÃO EXISTIU

O ANO QUE NÃO EXISTIU

ZARCILLO BARBOSA


O jornalista Zuenir Ventura chamou 1964 de “o ano que não terminou”. Por razões ainda mais perversas, 2020 passaria para a história como “o ano que não existiu”. Em 1964, crucial para a história brasileira, tivemos o Ato Institucional 5 concedendo poderes absolutos à ditadura miliar, seguido de cassações de mandatos, exílios, torturas e assassinatos. Neste ano que caminha para o seu final, pelo menos para cumprir o calendário gregoriano, tivemos mortes de vida, fim de empresas e empregos. O novo corona mudou a vida de todo o mundo no mundo inteiro.


No calendário islâmico estamos em 1442, no chinês em 4417 e em 5780 no calendário judaico. Donde se conclui que ano-calendário é apenas uma construção social, fruto de elucubrações religiosas influenciadas por estudos de astrônomos e matemáticos.


Quando a Inglaterra resolveu aderir ao sistema gregoriano, em 1752, foi necessário pular do dia 2 para o dia 14 de setembro. Os londrinos foram às ruas para reclamar: “Queremos nossos 11 dias?”


Assim como os ingleses daquela época, nós – os sobreviventes de 2020 – não receberemos os nossos dias 300 dias de volta.


Com as escolas fechadas, os estudantes não sabem se serão todos reprovados ou se vão passar por decreto. A dúvida atormenta os educadores: reprovar está fora de cogitação porque as matérias deixaram de ser prelecionadas; passar também é impossível, porque o ano-letivo não existiu.


A pandemia mudou a vida de todo o mundo, muito além dos incêndios na Amazônia e no Pantanal. A distribuição de Justiça também andou capenga e os governantes politizam a vacina que está para chegar, sem que ainda se saiba se haverá seringas suficientes para injetá-la.


Com a pandemia “no finalzinho”, no otimismo do presidente Bolsonaro,  vamos vivendo um ponto de inflexão. O côncavo para cima passou a ser para baixo. A curva atinge sua tangente e inflete, muda de direção. A filósofa norte-americana Kathleen Moore até recomenda considerar 2020 um ponto de partida igual a “zero”. “Os anos próximos é que serão os mais importantes para a história da humanidade”. Principalmente se a pilhagem do planeta não for detida. As pandemias viróticas desenvolvidas a partir de animais silvestres ameaçados vão tornar a sobrevivência cada vez mais difícil. Quando a Corona 19 for, finamente dominada, a humanidade vai ter que lutar por algo muito mais ambicioso que os programas sociais democráticos, ou revolucionários do século 20.


Isso supõe redefinir o próprio sentido da atividade econômica. Vale dizer, repensar nossa posição como sociedade e como espécie na biosfera.


Abaixo dessas indagações filosóficas, vejo-me mais identificado com a massa ignara inglesa do século 18. Quem vai pagar o preço emocional da suspensão compulsória da vida para nos manter vivos. O tempo perdido sem a cervejinha com os amigos. O emprego perdido. A viagem que não foi feita. As novas paisagens que deixaram de ser vistas. Quem? Até de receber os familiares para dar adeus a este ano sinistro, estamos proibidos, ou sob ameaça de uma denúncia do vizinho.


Os espíritos estão enfraquecidos, os solitários estão ficando mais solitários, o mundo está murchando.


A Covid mudou muito a forma como vivemos. Também alterou outra coisa – o próprio tempo.

Zarcillo Barbosa é jornalista
proximarota
2 Comentários
  • Zuleika Lemos Gonsalves

    Tempo perdido… parada, pensando e pensando… definitivamente, um ano perdido… mas, respirei, vivi e envelheci! Senti medo do vírus… serão as memórias!

    18/12/2020 às 01:48 Responder
  • Murilo César Soares

    Parabéns pela matéria, Zarcillo. Calma, o ano está no fim!

    18/12/2020 às 06:33 Responder

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