JESUS RIU?
ZARCILLO BARBOSA
Em “O nome da rosa”, de Umberto Eco, monges medievais discutem num convento que tem a maior biblioteca do mundo cristão em 1327, se Jesus riu ou não e proíbem o acesso a um livro em que Aristóteles faz a apologia do riso.
O sábio grego teria dito que “o homem é o único animal que ri”. O riso faria parte da essência humana, e um ser que não risse não poderia ser homem. Jesus é Deus feito homem e, portanto, deveria ter rido, além de outras coisas.
Os monges de Eco não queriam se envolver com esse problema que poderia ser considerado herético num momento em que estavam ocorrendo mortes misteriosas no convento.
A Bíblia tinha razão. Os Evangelhos, os Atos e as Epístolas não fazem menção de riso em Cristo. E cá para nós… se Ele fosse igual ao homem em tudo, de maneira definitiva, seria melhor desistir de uma vez de Deus.
Em compensação, os adversários riram de Jesus: Eles zombam dele, dizendo: “Salve o rei dos Judeus” (Mateus, 27,9). Em Lucas (6,21,25) o riso é claramente condenado: “Felizes vós que chorais agora: vós rireis … Infelizes vós que ris agora: ficareis de luto e chorareis”. Em toda parte que se fala explicitamente do riso no Novo Testamento, é para condená-lo como zombaria ímpia, sacrílega. As parábolas de Jesus, no entanto, seriam cheias de ironia em relação às práticas hipócritas dos fariseus, “sepulcros caiados”.
O primeiro riso reatado é uma história licenciosa. Deus diz a Abrão, com cem anos de idade, e a Sara, noventa anos, que eles devem ter um filho. Morrendo de rir, Abrão cai sobre seu assento e Sara, hilária, responde a Deus: “Enrugada como estou, como poderia gozar? ” (Tradução ecumênica da Bíblia). Ela não tinha regras há muito tempo, diz o Gênese; e ele, uma ereção, naquela idade? “Existe coisa impossível para o Senhor? ” – Esbravejou Jeová. E em lembrança desse riso, a criança que eles terão irá se chamar Isaac, isto é, “Deus ri”.
Há quem zombe da pandemia, como se fosse uma coisa desmerecedora de tanta preocupação. Melhor cuidar da economia. “Todos vão morrer um dia.”
No início do século 20, Oswaldo Cruz foi alvo de zombarias pelos chargistas da imprensa, e até de uma revolta negativista açulada pelos governantes, contra a vacina.
O desprezo no tratamento jocoso acaba contribuindo para banalizar as políticas públicas planejadas pelos cientistas para proteção da saúde da população. Cria aquele clima de irresponsabilidade que lota bares, praias e incentiva aglomerações festivas. Repicam os números nas estatísticas dos infectados.
Deus deve rir dessas coisas. Há séculos nos envia palavras de salvação e, mesmo quando nos atira boias de coisas práticas, como uma simples vacina, o negacionismo e a ridicularia as rechaçam.
Melhor voltar ao sagrado. Visitei dezenas de catedrais em vários países. Em nenhuma das igrejas, nem no Vaticano, no Louvre, no Museu do Prado, vi um quadro, afresco ou estátua que represente Jesus rindo.
No teto da Capela Sistina, Michelangelo retratou Deus quando toca Adão com o dedo, criando o primeiro homem. Seu semblante tem a seriedade de quem está convicto dessa enorme responsabilidade.
Um dia, depois de quase 5 mil quilômetros rodados com meu amigo Marco Brisolla (hoje ri lá do céu), paramos em Amiens, na Picardia. Lá existe uma enorme catedral gótica, ao estilo de Notre Dame, mais alta do que larga. A altura das abóbadas chega 42 metros de altura.
Na galeria que circunda o altar-mor de 800 anos, existe uma obra moderna provocante do surrealista Clovis Trouille, Le grand poème d´Amiens. Cristo coroado de espinhos, o corpo coberto de chagas, sacudido por grande gargalhada e olhando a abóbada.
Escreveram dezenas de livros sobre o sentido possível dessa obra. Resumindo o meu olhar de simples expectador inocente, tenho por mim que às vezes só nos resta rir de tanta estupidez humana. Nem Jesus escapa.
