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SOMOS ANJOS DE UMA ASA SÓ

SOMOS ANJOS DE UMA ASA SÓ


ZARCILLO BARBOSA


Nada mais chato do que as retrospectivas do ano. Os editores se sentem no dever de pautar matérias sobre os fatos acontecidos no ano moribundo.


Pela centésima vez, lá vêm imagens e textos da queda da barragem de Brumadinho; da pá que recolhe óleo da areia da praia e cenas das queimadas na Amazônia.


A vida que não conseguimos segurar tem uma grande vantagem: ela passa levando tudo – dores e flores, amarguras e amores – para a cinza da indiferença. Inútil esse esforço de relembrar o leitor/expectador o que se passou.


Sobre essa tentativa estéril refletia o filósofo Heráclito há 2.500 anos: Nenhum homem atravessa um mesmo rio duas vezes. Quando volta a ele, nem o rio é o mesmo e nem mais o homem o é”.


Heráclito que vivia em Éfeso, na atual Turquia, era chamado de “O obscuro”, porque era difícil de ser entendido. No entanto está claro que todas as coisas se movem e nada parece imóvel. Essa ideia é sintetizada pela expressão grega Panta Rei.


“O que passou, passou ”, dizia a primeira estrofe de uma marchinha de carnaval. De nada adianta os sociólogos afirmarem que a única coisa que existe é o passado. O presente é um processo e o futuro a Deus pertence – dizem.


Valho-me do inesquecível cientista-letrista, Paulo Vanzolini, compositor do samba gravado há 50 anos por Noite Ilustrada: “Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”. Em vários momentos e de muitas maneiras, cada um do seu jeito, sempre podemos dizer que “ali onde eu chorei / qualquer um chorava / dar a volta por cima que eu dei / quero ver quem dava”. Esta, a grande vingança contra quem mal nos quis.


Na antevéspera do Natal, na fila do supermercado, o cliente da frente virou-se para me confessar ter ficado desempregado e dado a tal “volta por cima”. Sem mágoas, dizia que “pé-na-bunda tem a vantagem de nos empurrar pra frente”.


Outra pauta importante para a edição de fim-começo de ano diz respeito aos “planos e projetos para o futuro”. Aliás, quem faz planos para o passado? Minha irmã, enquanto enfrenta mais uma sessão de quimio, estuda as previsões da astrologia chinesa. O ano do Rato prognostica boas condições para a saúde.  Além disso, não protege corruptos: quem faz o mal, paga aqui mesmo.


Os numerólogos indicam que 2020 será regido pelo número 4 (2+0+2+0=4) – ponderado e tranquilo. Nem tão bom e nem tão ruim. “Evite se envolver em política” – é a advertência para um ano de eleições municipais. Robério de Ogum diz que dois ex-presidentes vão morrer em 2020. Também não especificou se ex-presidentes da República ou de algum time de futebol.


Quando a conversa enveredou para o futuro da pátria, meu colega de fila no supermercado simplesmente despejou: “O que o Brasil precisa é de uma chuva de gasolina de três dias e depois alguém risca um fósforo.”


Pablo Neruda teve reflexões mais poéticas para se viver melhor no novo ano: “Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito, quem não muda de marca, não arrisca vestir uma cor nova e não fala com quem não conhece. Morre lentamente quem evita uma paixão (…)”


Volto ao Panta Rei, de Heráclito que inspirou Fernando Pessoa. É dele o verso belíssimo que talvez possa nos ajudar a entender o passado e empreender novos voos com base na realidade sempre presente:


Somos todos anjos de uma asa só e só podemos voar quando abraçados uns aos outros.

 
Feliz 2020.



*Zarcillo Barbosa é jornalista.

proximarota
2 Comentários
  • Paulo Paes Junior

    E se repetirem a Retrospectiva de 2018, talvez alguns só farão reclamações sobre o esquecimento da partida do Gugu.. mais recente. E o maravilho Ricardo Boechat que deve estar p…. da vida, por ter sido forçado a deixar-nos órfãos… lágrimas

    28/12/2019 às 17:50 Responder
    • Paulo Paes Junior

      E o maravilhoso…

      28/12/2019 às 17:52 Responder

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