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DETALHES QUE INFERNIZAM A VIDA

DETALHES QUE INFERNIZAM A VIDA


ZARCILLO BARBOSA
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Comprei uma panela da Rochedo. Minha mãe só usava dessa marca e vivia exaltando sua durabilidade.


Naquele tempo esses utensílios eram esfregados com sapólio. Quando não havia, a dona de casa lançava mão das cinzas do fogão à lenha e até de areia. Daí o verbo “arear”, há muito em desuso.


Quando não dá mais para utilizá-las, por causa da negritude impregnada, compra-se novo conjunto.


Assim fui eu comprar uma Rochedo. Parece tão boa quanto as panelas de mamãe. O problema foi tirar o rótulo. Tentei água fervendo, álcool, detergente, acetona, maçarico. Só faltou urânio-235.


Quando consegui destruir o bicho com canivete, ainda sobraram resíduos de cola que só saíram com solvente. Antes, tive que sair para compra-lo na loja de tintas. Votei tão tarde que achei melhor convidar a família para comer a quilo.


Os americanos, consideram que a facilidade em abrir uma embalagem, de entender como funciona um produto ou livrar-se de rótulos é um atributo de bom desempenho. Isto é, o consumidor lê as facilidades na pronta utilização de um alimento ou de um objeto, como uma qualidade extra da mercadoria. Isso dá crédito ao fabricante. Passa a ideia de atualização tecnológica; de interesse em satisfazer 100%.


Estranho que no Brasil, onde se fala tanto em pós-venda, Iso 9000 e satisfação total!, ninguém tenha aprendido esse macete com os reis do capitalismo.


Aqui, minha senhora, se você não tiver um canivete suíço com uma centena de funções é impossível abrir um sachê de ketchup. Tente abrir um vidro de azeitonas ou uma garrafa de vinho nacional. Comprei um saca-rolhas sofisticado nos Estados Unidos e não consigo usá-lo. O troço que tapa o gargalo do vinho nacional é feito de pó de serragem aglomerada. Sequer resiste à espiral de aço do meu abridor. O tampo se esfarela e aí, só empurrando o resto para dentro.


Certa vez tive que esgotar meu repertório de inglês para responder a uma pergunta do meu cunhado, americano nato. Ele queria saber porque os carros brasileiros, velhos de cinco, dez anos de uso, ainda preservam aqueles selinhos de inspeção que as fábricas colocam nos para-brisas, antes de serem entregues aos revendedores. Pode ser que haja proprietários que gostem de conservar os selos para dizer que o veículo é tão novo que ainda os tem. Seria uma neura compreensível num país pobre. Agora, tente arrancá-lo. Na última vez que tirei um zero km no consórcio (faz tempo) tive que ameaçar o Nilson Simão de não assinar a carta de crédito enquanto ele não providenciasse a limpeza dos vidros.


Raramente consigo decifrar um manual de uma geringonça tecnológica. Principalmente quando já “traduzidos” para o português. Comprei um micro-ondas cujo prospecto tinha a pretensão de ensinar a cozinhar feijão com lentilhas. Nem mencionava que era preciso pôr água, tempero…


Bill Gates tornou-se um dos homens mais ricos do mundo facilitando o acesso à informática. É só clicar na figurinha. Qualquer matuto é capaz de tirar lindas fotos digitais somente apertando um botão.


Agora, tente abrir um pacote de Miojo. E um preservativo então!? Naquele filme “Cinquenta tons de cinza”, o charmoso empresário consegue tirar a roupa da mocinha tímida com a mão direita, abrir o invólucro da camisinha só com a mão esquerda, e beijar a parceira ao mesmo tempo. Maior enganação.


Seguindo o princípio evolucionista, as gerações futuras vão ter dentes incisivos laterais maiores e mais pontiagudos do que já são, justamente para facilitar a abertura de embalagens. Ou então elas vão desaparecer, o que é a hipótese mais provável.


Zarcillo Barbosa é jornalista
proximarota
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