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ALÉM DO MENINO JESUS NO PRESÉPIO

ALÉM DO MENINO JESUS NO PRESÉPIO

ZARCILLO BARBOSA
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Natal e política são comemorados, no nordeste da Espanha, de cócoras. Fazendo cocô.


Explico antes que me xinguem. A versão catalã do presépio inclui um personagem adicional, além do Menino Jesus, São José, Maria, os Reis Magos, burrinhos e vaquinhas. Nunca falta a figura do “caganer”.


O bonequinho agachado, em posição fecal, é uma tradição centenária naquela região.


Descobri essa curiosidade quando viajava pela Catalunha. Meus companheiros queriam ir à Andorra e acabamos em Girona. Fazia frio e entramos num lugar cheio de visitantes, em busca de aquecimento. Tratava-se de uma grande sala, com um presépio eletromecânico parecido com aquele da Casa do Garoto, se é que ainda existe. Figuras esculpidas em gesso e resina lembram a sagrada família, a rotina do campo e da cidade, com monjolos, animais, roçados e casas iluminadas.


Em algum lugar daquela geringonça, o guia me apontou a figura do “caganer” e alertou: é preciso colocar o caganer onde não possa ser visto pelo Menino de Jesus em sua manjedoura. “É uma tradição religiosa” – explicou.


Naquela época, a fisionomia caprichada do boneco era idêntica a de Felipe Gonzáles, primeiro-ministro socialista. Havia outro que lembrava Harold McMilan, chanceler britânico.
 


Lula e Dilma também já foram homenageados pela tradição catalã quando estavam no poder. Todos os anos novas variações são incluídas no catálogo.  Donald Trump estreou no ano passado. Fico na expectativa de saber se Bolsonaro terá essa honra, algum dia, ou se os organizadores vão achar que essas coisas ele já faz muito por aqui.


Lá em Girona existe até a Associação dos Amigos do Caganer, cujos sócios entregam anualmente um prêmio “caganer do ano” a personalidades culturais.


O personagem defecando não é um desrespeito ao presépio. A figura é interpretada como fertilizadora da terra e portadora da sorte no lar.


O caganer não surgiu ligado à política. Mas, nos anos 1960, uma corrente feminista incluiu mulheres entre os agachados. Nos anos 2000 vieram os jogadores de futebol e os políticos. Virou jogada de marketing para atrair a mídia europeia e os turistas.


Durante anos o caganer não saía da minha cabeça. Quis fazer meu projeto de mestrado em cima dessa figura, mas o meu orientador na USP não topou. Mais que um meio de comunicação a estatueta serve de reforço à identidade cultural da Catalunha. A região fronteiriça com a França caga para o resto da Espanha da qual tenta separar-se desde a época da Guerra Civil Espanhola, em 1937.


Para estabelecer uma identidade cultural é preciso encontrar símbolos próprios e distintos. O caganer serve muito bem como demarcador para estabelecer o que é tipicamente catalão.


A tradição está relacionada à terra e aos camponeses, razão pela qual aficionados do caganer criticam as variações com rostos de políticos.


Mas a versão contemporânea já está enraizada.


O caganer serve hoje como maneira de comentário humorístico da atualidade política e social.


Descobri que na Catalunha, o caganer não é a única figura ligada às fezes. Lá, eles também celebram o “caga tió”. Um tronco de madeira com cara de boi-bumbá malandro, coberto com uma mantinha xadrez. Crianças o espancam durante o Natal até que ele “defeque” guloseimas.


Esse caráter lúdico une dois elementos e pode ser uma das causas do seu surgimento e popularidade. Os catalães dizem que toda criança se encanta em ver os outros seres defecando. Deve ser a tal “fase anal”, de Freud.



Zarcillo Barbosa é jornalista
proximarota
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