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A PANDEMIA DOS CLICHÊS

A PANDEMIA DOS CLICHÊS

ZARCILLO BARBOSA
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Os clichês abundam em situações que envolvem a massa. “É preciso se reinventar na crise”, por exemplo. O que significa isso, ninguém é capaz de definir.


Clichê é como Gustave Flaubert (1913) denominava os termos que tentam condensar sentidos com falsas verdades. Pode ter efeito ameaçador ou reconfortante. O escritor francês é autor de um “Dicionário de Ideias Feitas”, repleta do que também é chamado de aforismos. Um deles, até hoje repetido: “Feliz: nasceu virado para a lua”. Nós acrescentamos “bunda”. O seu alcance real é desconhecido.


É comum, nesta fase pandêmica, nos depararmos com fotos na mídia, com a legenda “A natureza retomando seu espaço”. Grama nasce no asfalto, animais silvestres invadem o espaço urbano. Ocorrem em todas as épocas. “Não sairemos iguais desta crise”.


Depois desse desastre global, por um vírus que ainda não conhecemos nos seus efeitos e resistências, creio ser impossível prever se vamos mudar de comportamento para melhor, ou voltar ao de sempre.


Um dos clichês mais representativos é otimista: “Sairemos maiores dessa…” Pelo menos, nos desobriga a pensar. O tempo haverá de resolver em nosso favor. Quando acabar, vai dar certo. Se ainda não deu é porque não acabou – obrigado, Fernando Sabino.


O escritor e jornalista Sérgio Rodrigues, autor “What língua is esta?”, defende que os clichês têm um quê de autoajuda. Desinfeta como o álcool gel. Ou álcool em gel, assim conclamado como “norma culta”. Se temos caneta tinteiro e sabão em pó, a lógica nos aponta aceitar ambas as formas.


A verdade é que o “novo normal” normaliza o que ninguém tem ideia do que seja.


Há também os vanguardistas. Dia desses, na Folha, Jô Soares chamou Jair Bolsonaro de único presidente “patafísico”. Deixou de explicar o que isso quer dizer. Remeteu os leitores ao Google. A patafísica seria uma ciência das soluções imaginárias. Criada por Alfred Jarry (morreu em 1907), autor de “Rei Ubu”, peça encenada várias fezes no teatro brasileiro moderninho.


Realmente, Bolsonaro é “ubuesco”, com o seu jeitão anárquico de explicar o absurdo. Ele mente, desmente. Ele nega o que disse e nos acusa de ter dito por ele. Bolsonaro aparenta falar apoiado pelas Forças Armadas e pelo “povo” – aquele circunscrito ao chiqueirinho do Palácio da Alvorada.


É preciso fugir do clichê como o diabo foge da cruz. Agora, “tudo é líquido”. A modernidade é líquida, amor líquido, vida líquida. O filósofo Zygmunt Bauman (1925-2017), elaborou sua tese com tanta responsabilidade e avacalharam com ela. A liquefação é das instituições políticas, das identidades. O que antes era um arcabouço sólido virou passageiro. “Como as democracias morrem”, dos professores Levilsky e Ziblatt, demonstra essa liquefação da estrutura social, na era dos aplicativos.


O termo “quântico”, que não se consegue explicar logicamente na versão vulgarizada, parece comprovar a existência de Deus. O quântico está presente nas nossas vidas e é responsável por tudo. Como aquele cidadão quântico, que no seu leito de morte, invoca o Criador e pede, por derradeiro, um palito de dentes.


Zarcillo Barbosa é jornalista

proximarota
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